A súbita notoriedade alcançada pelo vice de Serra com as acusações ao PT por supostas relações com as Farc e o narcotráfico já tinha reforçado a impressão de que política externa será tema recorrente na campanha presidencial — com a profundidade e acuidade de que os candidatos e suas equipes forem capazes. O conflito diplomático recém-instalado entre Colômbia e Venezuela, tendo a guerrilha colombiana como pivô, autoriza os observadores do cenário regional a apostarem que o tema em seu conjunto se impõe na próxima agenda dos sucessores de Álvaro Uribe e Lula — e, no caso brasileiro, com expectativas substancialmente diferentes segundo o desfecho da eleição de outubro. Por Silvio Queiroz
A guerra de baixo impacto que se arrasta há meio século na Colômbia, seu impacto sobre o tráfico de armas e drogas, as consequências inescapáveis para os vizinhos, entre elas a presença antevista de tropas americanas em bases aéreas e navais colombianas — todo esse emaranhado parece ter chegado a um ponto de ebulição. O entrevero em torno da presença de acampamentos das Farc na Venezuela tende a se desanuviar a partir de sábado próximo, quando Álvaro Uribe, que denunciou o desafeto Hugo Chávez, deixa a Casa de Nariño para Juan Manuel Santos, que até aqui acenou com o cachimbo da paz. Resta saber se haverá fumo para queimar também com Alfonso Cano, comandante máximo das Farc, que trocou o disco arranhado dos oito anos de Uribe e convidou Santos, em mensagem de vídeo: “Conversemos”.
E por falar…
Cano, por sinal, tem predileção pelo verbo “conversar”. Dez anos atrás, em entrevista que me concedeu durante o fracassado processo de paz com o antecessor imediato de Uribe, Andrés Pastrana, o então ideólogo-chefe aplicou-o para defender a “lei 002 sobre impostos”, que as Farc “decretaram” em maio de 2000. O sentido da ordem para que os titulares de patrimônio acima de US$ 1 milhão destinassem à guerrilha 10%, a título de “contribuição para a paz”, seria justamente aposentar os então numerosos sequestros extorsivos, praticados com bloqueios em estradas sob o nome picaresco de “pesca milagrosa”. Com ar professoral, que se acentuou notavelmente com os anos, Cano deu o novo mote: “Primeiro, conversemos”.
Diálogo foi palavra-chave da diplomacia brasileira, nos anos Lula, em meio ao campo minado do conflito colombiano. Permitiu a costura de um consenso que trouxe Uribe ao Conselho de Defesa da Unasul, em troca do compromisso dos vizinhos de negarem reconhecimento à guerrilha. Da mesma maneira, o apoio a uma solução negociada credenciou o Brasil a fornecer logística para o resgate de reféns libertados pelas Farc, graças à confiança de ambas as partes. Em 2000, Cano se referia com certo desdém ao “Lulinha paz e amor”, em marcha segura para o Planalto. Agora, dirige-se respeitosamente à Unasul, louva e agradece os bons préstimos do governo brasileiro, dá a entender que os vizinhos seriam bem-vindos como avalistas de uma nova rodada de conversações.
Esfinge
Um observador atento do conflito colombiano, que conheceu em pessoa alguns dos principais protagonistas atuais — mas não Cano —, perguntava-se o que se poderia esperar do homem que sucedeu ao legendário Manuel Marulanda no comando das Farc, há dois anos. O lendário Tirofijo, um dos fundadores da guerrilha, era um camponês sagaz, guerrilheiro quase por instinto, mas avesso a muita teoria. Seu sucessor, nascido na classe média de Bogotá, atendia até 30 anos atrás pelo nome de Guillermo León Sáenz, antropólogo da Universidade Nacional, veterano da Juventude Comunista. Perfil idêntico ao de Jacobo Arenas, cofundador e ideólogo das Farc até a morte, em 1990 — por causa natural, como a de Marulanda.
Cano não faz segredo da admiração pelo velho professor, que o apadrinhou e tornou próximo também de Tirofijo. Agora, sexagenário e com metade da vida passada en el monte, ele tem o desafio de encarnar a ambos.
Torcidas em campo
O caso é que o novo cenário regional, com a envergadura assumida pelo Brasil nos últimos anos, estará permanentemente no cardápio do próximo governo. E as diferenças entre os candidatos, evidentes já no prelúdio da campanha, aguçam a avidez dos diplomatas por pistas, avaliações, palpites até sobre quem receberá a faixa de Lula, em 1º de janeiro. No contexto de uma conversa informal sobre o último round travado entre Chávez e Uribe, um diplomata de país desenvolvido que serviu recentemente em ambas as capitais confidenciou: seu governo, de centro-direita, embora neutro, sente que a conversa tende a ser mais fácil com Serra, por afinidade.
No reverso da medalha, o bloco bolivariano disfarça cada vez menos a expectativa quase ansiosa por ver Dilma subir a rampa. De preferência, com Raúl Castro, Chávez e Evo Morales na fila do gargarejo. – Conexão diplomática / coluna - Correio Braziliense
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