A pauta ideal de campanha não é a que partidos e candidatos estabelecem, mas a que o eleitor escolhe. Nesta eleição, prevalece, até aqui, acima de todos os temas, a chamada agenda religiosa. Parcela ponderável (e respeitável) de analistas e cientistas políticos a considera uma agenda obscurantista. O presidente do PT, José Eduardo Dutra, a chamou de “medieval”.
Em eleição, porém, discute-se para - e não com - o eleitor. Ele é o dono da jogada. Nenhum dos candidatos anteviu o afunilamento dos debates convergindo para um tema como o do aborto. Não era causa de ninguém, nem para defesa, nem para combate. Por Ruy Fabiano
Mesmo a maior beneficiária da discussão, Marina Silva, do PV, sobre quem desembocaram os votos religiosos do primeiro turno, explorou a questão. Evitou-a sempre que abordada. É contra, mas convocaria um plebiscito para resolvê-la. Foi tudo o que disse, preocupada em afrontar a parcela progressista de seu eleitorado.
Chega-se ao segundo turno com o tema ainda pulsando, indiferente aos protestos de intelectuais e artistas. O que há, no entanto, por trás dele? Por que se tornou tão relevante saber se o candidato crê ou não em Deus, aprova ou não o casamento gay? Nenhum tema que brota espontaneamente da sociedade é irrelevante ou desprezível. Serve, quando nada, para mostrar seu perfil, inclinações, tendências e valores, até então ocultos.
E aí constata-se que não é apenas no campo econômico que há disparidades profundas entre as classes sociais no Brasil. Também no campo dos valores e do pensamento. Aborto, casamento gay e outros itens da agenda comportamental da esquerda, que o PT expressa melhor que qualquer outro partido no Brasil, esbarram no perfil conservador da maioria da população brasileira.
Esse o dado novo da campanha. Os partidos jamais o discutiram, atendo-se a temas econômicos, políticos, corporativos e ideológicos. Eis o que brota de toda essa discussão: a descoberta de que a maioria da população brasileira, sobretudo suas camadas média e baixa (mas não apenas), é conservadora.
Não referenda a agenda comportamental da vanguarda intelectual universitária. Ouve mais o padre e o pastor que o político, o sociólogo, o artista ou o intelectual. E foi de púlpitos e templos, na contramão do que vige em academias, palcos e tribunas, que começou a reviravolta da campanha.
Antes, prevalecia o discurso distributivista do PT, que o PSDB, mesmo invocando precedência em ações como o Bolsa Família, não conseguia superar. Dilma nadava de braçada.
Eis que alguns religiosos começaram a fuçar o programa de governo do PT e alguns documentos do governo Lula. Já havia antecedentes de protesto, que remontavam à edição do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), no final de 2008, que provocou um manifesto da CNBB em janeiro de 2009.
Lá, além da liberação do aborto, constava a proibição de símbolos religiosos em locais públicos. O governo, porém, recuara e o assunto parecia encerrado. Não estava. O PT o fez ressurgir ao inseri-lo no primeiro programa de governo de Dilma, registrado no TSE e rubricado pela candidata. Nova reação, novo recuo. Mas já era tarde.
Recomendações para que não se votasse no PT começaram a pipocar em templos e prelazias, país afora. Descobriu-se também que o PT expulsara dois deputados anti-abortistas. E que patrocina um projeto de lei (122), em tramitação no Senado, que criminaliza a pregação religiosa contra o homossexualismo.
Em busca de reduzir o prejuízo, Dilma passou a frequentar igrejas, comungar, rezar, pedir socorro a pastores e bispos aliados e a desdizer tudo o que sempre dissera, ao tempo em que nem desconfiava que isso lhe traria problemas.
Serra não precisou fazer nada. Como seu partido e ele próprio jamais se ocuparam desse tipo de questão – e como sempre declinou sua condição de católico, contrário ao aborto -, não precisou lutar contra suas próprias declarações. É agora beneficiário único de uma situação igualmente inesperada. Inesperada mas não irrelevante.
Por trás dela, há toda uma camada de valores a ser estudada pelos analistas sociais. O Brasil é simultaneamente um país laico e religioso. E isso perpassa todas as classes sociais. Seu estamento intelectual – e aí se incluem os políticos - não pensa como a maioria. Pior: nem sabia como essa maioria pensa.
Decifrá-lo é o primeiro passo para reduzir o abismo que separa sociedade e política no país – e esta campanha oferece essa oportunidade. Não adianta maldizer a realidade. Ela não deixará de ser real por isso. Abc.politiko
Ruy Fabiano é jornalista e escritor
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