Em discurso no dia 1° deste mês. O presidente Lula disse que se orgulha da carga tributária do Brasil. "Os estados que têm as melhores políticas sociais são os que têm a carga tributária mais elevada." Citou Estados Unidos. Alemanha, Suécia e Dinamarca. "Quem tem carga tributária de 10% não tem estado. O estado não pode fazer absolutamente nada." A declaração é uma barafunda. Embaralha conceitos corretos com ilações estapafúrdias, como a de que haveria alguém demandando uma carga de 10% do PIB.
O presidente deveria ler sobre o assunto ou cercar-se de quem o entenda. Não há como orgulhar-se de uma carga excessiva, caótica, inibidora do crescimento, que tributa mais os pobres do que os ricos.
Economistas do governo sustentam teses igualmente esquisitas. O relevante seria a carga tributária líquida, isto é, a arrecadação menos as transferências de renda. Assim. não seriam contadas as transferências de renda. Assim. não seriam contados os gastos previdenciários. o Bolsa Família nem outras transferências a pessoas. Por aí, o estado poderia tributar 100% da renda dos que trabalham, desde que a transferisse aos que não trabalham. O leitor concorda?
Cargas tributárias muito baixas limitam a ação do estado. Nisso o presidente tem razão. No século XIX, o economista alemão Adolph Wagner (1835-1917) observou que a elevação dos gastos públicos e, assim, da carga tributária tinha a ver com o crescimento econômico e com as demandas do eleitorado, favoráveis à expansão dos gastos atinentes ao estado de bem-estar social.
A Lei de Wagner foi refinada pelo economista americano Richard Musgrave (1910-2007). No processo de desenvolvimento, os gastos do estado aumentam por três caminhos: (1) o provimento aumentam de aposentadorias. educação e saúde; (2) ações a relativas à segurança, meio ambiente e intervenção na economia: e (3) políticas públicas de natureza social.
O gasto público do Brasil (cerca de 40% do PIB) é semelhante ao de país rico europeu. Nada a ver com aquela lei, mas com a força de lobbies. O disparate deriva da Constituição de 1988 e dos fortes aumentos do salário mínimo (em especial com Lula), o qual reajusta dois de cada três benefícios previdenciários. Ou se elevava a carga tributária ou se financiava a gastança com inflação ou endividamento, o que seria muito pior.
Todos os países emergentes de renda média. com os quais nos comparamos. têm carga tributária ao redor de 25% do PIB. O Brasil, com 36%. é uma destacada exceção, que não pode nos deixar felizes. Carga tributária desse porte é característica de países ricos como os citados por Lula, de alta renda e riqueza. Nos Estados Unidos, mais de 60% da carga vem de impostos sobre a renda e a propriedade. No Brasil, apenas 20%.
Com renda per capita incompatível com uma carga alta sem distorção - privilégio das nações ricas -, o Brasil depende da elevada tributação do consumo. Ao contrário do que ocorre naquelas nações (um imposto geral sobre o consumo e um específico sobre bens supérfluos como cigarros e bebidas), a estrutura brasileira contém pelo menos seis tributos: IPI, ICMS, ISS, PIS/Cofins. Cide e IOF no crédito ao consumo.
A tributação do consumo extrai mais da renda dos pobres. Exemplo: o valor do ICMS sobre o pão é o mesmo, independentemente de quem o compre. Nesse caso, como nos demais, o ICMS representa um porcentual muito maior da renda do pobre do que do rico. Segundo o Ipea, quem ganha até dois salários mínimos paga 54% de sua renda em tributos. Quem recebe mais de trinta mínimos paga apenas 29%.
A fora essa disfunção social, a carga tributária é um estorvo ao crescimento. De 1988 para cá, houve piora sistemática no tamanho e na sua qualidade. O ICMS, o caos maior, tem 27 legislações diferentes, inúmeros regimes tributários, alíquotas incontáveis e confusas regras. Seu peso se agigantou em itens fundamentais para o desenvolvimento, como telecomunicações e energia.
Ao se orgulhar dessa inaceitável realidade, Lula presta mais um desserviço ao país. Desmoraliza os brasileiros que se dedicam a estudar a carga tributária e a condená-la com fundamentados argumentos. Para ele, feliz da vida com tal carga, não precisamos de reforma. Mais uma vez, o leitor concorda?
Por Maílson da Nóbrega - Revista Veja
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