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26 de setembro de 2010

Dr. Jivago e o espírito libertário

Nenhum Estado está acima do bem e do mal. Qualquer governo que pregue isso está equivocado ou mal-intencionado. E se a sociedade não disser "não" a esses "ungidos de Deus", será a vitória do arbítrio.

Revi há pouco, e oportunamente, o filmaço Doutor Jivago (Doctor Zhivago) feito a partir do livro homônimo do poeta russo Boris Pasternak (1890-1960). Uma superprodução de meados da década de 60, dirigido por David Lean, Jivago é na verdade um alterego do próprio Pasternak, que viveu nos anos de chumbo da antiga União Soviética. Entre os atores, Omar Shariff e Julie Christie, no papel da bela Lara, por quem ele se apaixona.

A alma de poeta de Boris Pasternak foi cruelmente ferida pelo regime de força que imperava na antiga União Soviética, quando o regime dominante se confundia com o Estado (acorda, Brasil!) e os cidadãos, principalmente escritores e poetas, eram esmagados pelo tacão do totalitarismo. Por Luiz Oliveira Rios



Pasternak ganhou o Nobel de Literatura em 1958, mas o regime de ferro não permitiu que ele saísse do país para receber a merecida honraria. Vemos aqui um grande paradoxo: os ditadores não temem as armas mais modernas, de destruição em massa, mas pelam-se de medo diante daqueles que ousam pensar diferentemente deles. É que as verdadeiras revoluções não se fazem pela força das armas e sim pela força do pensamento e do espírito.

Com a palavra o Christos, também conhecido como Jesus.

"As revoluções duram semanas, anos; depois, durante dezenas e centenas de anos elas são adoradas como algo de sagrado, esse espírito de mediocridade que as suscitou", eis a máxima de Pasternak, com a lucidez que lhe era peculiar.

Durante a Primeira Guerra Mundial Pasternak trabalhava numa usina química nas cercanias dos Urais. E foi nesse período que lhe veio a inspiração para escrever Doutor Jivago, cujos originais, proibidos na URSS, foram contrabandeados para a Itália e ali publicados no ano de 1958. Um best-seller. Somente 31 anos depois, em 1989, os russos puderam ler Doutor Jivago, por obra e graça da abertura política feita por Gorbatchev.

Todos os Estados totalitários abominam a luz contida nos livros que esclarecem as mentes e desenvolvem nos cidadãos o senso crítico, que é o atributo principal do pensamento livre dos seres humanos. É por isso que o totalitarismo adora as trevas da ignorância, manipulando os fios da escuridão em prol da manutenção do establishment estruturado no arbítrio.

No livro Doutor Jivago, aliás, a pena de Pasternak menciona os Urais da sua terra amada – de que o Estado absolutista se julgava dono (de tudo e de todos). No filme, com uma plasticidade magnífica, aparecem os Urais desassombrados. Poesia filmada. (Aliás, vale a pena saber: os montes Urais são uma cordilheira com extensão de 2.500 quilômetros, delimitando Europa e Ásia. Seu ponto culminante é o Naroda (1895 m). A Rússia faz parte desses dois continentes. Também vale a pena não esquecer que o nosso Brasil é tão grande que, com exceção da Rússia, aqui cabe a Europa inteira e ainda sobra chão. Não temos os Urais, mas temos a Mantiqueira.)

Espíritos livres não podem viver em terra violentada pela força medíocre dos pseudos demiurgos que posam como emissários de Deus. Boris Pasternak, no seu tempo, era um prisioneiro dentro da sua própria terra. No entanto, mesmo impedido de ir e vir corporalmente, por meio de sua imaginação estava sempre livre para criar o belo – e toda criação de beleza é uma teofania, uma manifestação de Deus no curso da História.

A liberdade, cujas asas são sempre douradas, é o berço da criação de toda forma de beleza inerente à inventividade humana. Por isso precisamos denunciar, com todas as letras, a falácia de que o Estado é soberano. Mentira!

Só como exemplo, a "soberania totalitária do Estado cubano" – aproveitando palavras recentes do próprio Fidel, numa entrevista para um jornal americano – aprisionou seu povo e destruiu sua economia em nome de uma ideologia – como todas as ideologias – mais furada do que queijo suíço. Nenhum Estado pode estar acima do bem e do mal – e todo governo que pregue isso está no mínimo equivocado ou mal-intencionado. E quando isso acontece, se a sociedade não se unir para dizer um sonoro "não" aos que se julgam "ungidos de Deus", o resultado será a vitória do arbítrio.

Em termos de transcendentalidade, somente Deus é soberano; depois é a pessoa humana, a fauna e a flora dos rincões, que formam territórios a serem respeitados por legislação positiva editada, digamos assim, por um Estado que saiba qual é o seu lugar e o seu papel na História, sempre a serviço do cidadão, e não como usurpador dos mais comezinhos direitos desses mesmos cidadãos.

O amor impossível entre Lara (Julie Christie) e Jivago (Shariff) e a lancinante e silente mágoa da suave e compreensiva esposa (Geraldine Chaplin) mostram as paixões loucas da Revolução em curso e os anseios pela liberdade que não se consegue jamais pela força das armas, senão pela vigência da mãe de todas as formas de liberdade: a democracia. Pasternak soube, com maestria, alinhavar sua narrativa, mostrando as paixões humanas em alta octanagem, tendo como pano de fundo os fatos históricos de então; e depois, na tela do cinema, soube por sua vez o diretor eternizar esse clássico da literatura russa e que agora já pertence às letras universais.

A literatura russa, aliás, de forma metafórica e às vezes de crueza direta, repercute com força e sensibilidade o anseio natural pela liberdade de pensar e existir daqueles que sentiram na própria pele as vicissitudes dos regimes de força que macularam – e ainda maculam – muitos povos.

Quando os direitos de uma única pessoa são lesados – nem se precisa atingir um povo inteiro – é como se os direitos de todos o seres humanos fossem simultaneamente violados.Afinal, numa paráfrase às palavras magnas de John Donne, quando se referia a um homem, naquilo que o afeta, também atinge toda a espécie humana: "Não devemos perguntar por quem os sinos dobram: eles dobram por mim, por ti, por nós" ...

Luiz Oliveira Rios é profissional de Marketing e Vendas e colunista do Diário do Comércio. oliveira.rios@hotmail.com

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